quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Anarquismo e nação


Há alguns anos para cá que existe uma pequena, mas crescente e influente, minoria nos meios libertário contemporâneos que se desenvolve a partir de umas bases tidas como “heréticas” pela maioria. Esta minoria, cuja vos se torna cada vez mais forte apesar dos poderes, anarquistas e não anarquistas, interessados em a silenciar, apoia abertamente a luta dos povos pela soberania, dos grupos étnicos, das nações e dos indivíduos, atribuindo a estas lutas um forte potencial como sendo factores determinantes para a construção de uma sociedade mais justa e livre da opressão capitalista. Esta tendência “identitária”, caracteriza-se por uma determinada “consciência nacional” no seio dos movimentos tradicionalmente conhecidos como sendo apátridas e internacionalistas, constitui-se como um movimento contestatário à marcha forçada do mundo para uma monocultura global, uma homogeneização, uniformização, da humanidade animada pelos interesses do Grande Capital Internacional, mas também e sobretudo como uma manifestação da resistência do povo à autoridade oficial com o propósito de preservar e valorizar os seus próprios particularismos culturais e vitais. Tal é a nossa posição e acreditamos que esta deveria ser compartilhada por todos aqueles que possuem ideais com uma vontade emancipadora, não importa qual a sua tendência.

Existe um grande número de anarquistas “ortodoxos” e gente “de esquerda” , ou de extrema-esquerda, que repudiam este enfoque, não tendo qualquer dúvida em denunciá-lo como uma forma derivada de “anarco-nacionalismo”. Baseiam-se na ideia preconcebida de que os entusiasmos étnicos ou nacionais deste género seriam “basicamente conservadores e inevitavelmente opressivos”, e que favoreceriam sistematicamente o desenvolvimento do racismo e do chauvinismo.

Estas duas posições friccionantes e aparentemente irreconciliáveis destacam dois aspectos importantes desta problemática, e a sua consideração permite definir as bases de um rumo que deve ser observado para uma melhor compreensão mútua ou, inclusive, para chegar a pontos de trabalho comuns.

Em primeiro lugar, por muitos argumentos que possam opor os defensores desta tendência “dominante” aos seus dissidentes “minoritários”, serão sempre os segundos e não os primeiros aqueles que permanecem fieis à tradição libertária mais clássica. Uma grande figura desta tradição, o revolucionário russo Mikhail Bakunine, condenava inequivocamente o “liberalismo” egoísta e destrutivo no qual se baseiam cada vez mais os focos do anarquismo “maioritário” actual, e repetia, não sem razão, que o homem é o animal mais individualista e, por sua vez, mais social da Natureza. Bakunine reconhecia que esta parte social do ser humano se expressava através das dinâmicas comunitárias das tribos, dos clãs, das culturas e das nações. Cada uma destas dinâmicas comunitárias constitui um fenómeno único, que não se repete na História e que constitui uma contribuição particular para a Humanidade.

Estas ideias foram também claramente expostas por outra grande figura do socialismo libertário, Gustav Landauer, alemão de origem judia nascido em 1870 e inspirador do sistema de “conselhos dos trabalhadores” (ou sovietes). Foi assassinado em 1919 pelos esbirros da reacção constituída pelos corpos francos (Freikorps).

Gustav Landauer proclamava:

“As diferenças nacionais são factores de primeira importância nas realizações que devem ser levadas a cabo na humanidade por aqueles que sabem distinguir entre a abominável violência oficial e a realidade vigorosa, bela e pacífica da Nação.”

Como “nação”, tal como Bakunine, Landauer entendia uma entidade cultural, e não uma entidade política. E também tal como Bakunine, posicionava-se a favor da soberania dos povos dentro dum contexto libertário e anti-imperialista. Louies-Auguste Blanqui, membro da Comuna de Paris e figura obstinada nas revoluções de 1830 e de 1848, pai da famosa sentença “Ni Dieu ni Maître” (nem Deus nem Chefe) tão significativa para todos os anarquistas, acreditava também numa marcada consciência nacional. Também foi o caso do teórico P.J. Proudhon, do socialismo libertário. Do mesmo modo, a insurreição anarquista dos partidários de Néstor Makhno na Ucrânia (1918-21) revestia-se de um inegável factor de luta de libertação nacional, e também um marcadíssimo sentimento da mesma índole.

Essa confusão tão actual e nada inocente que pretende assimilar o término Nação ao conceito de “Estado-Nação”, deve denunciar-se de agora em diante. Não deve continuar a utilizar-se.

Supostamente, na actualidade não é necessário dedicar um culto idólatra a Bakunine, Landauer, Blanqui, Proudhon ou a Makhno, os desafios que estes enfrentaram são distintos dos do nosso tempo, mas seria bom ter em conta as ideias defendidas por estes grandes homens do anarquismo. Sobretudo agora, que sob a influência dos preconceitos próprios da ordem actual, dos seus interesses, alguns “anarquistas” da tendência dominante pretendem relegar este tipo de discurso para os caixotes de lixo da História, um pouco de reciclagem pode ser um importante labor higiénico.

No futuro, cada vez mais libertários e contestatários de todos os géneros acabarão por reconhecer na sua devida medida a inevitável interdependência que existe entre o indivíduo e as unidades orgânicas que constituem o ambiente no qual se desenvolve a sua vida: os vegetais, os animais, e toda a biosfera. Admitimos que estas unidades, constituindo cada uma delas uma comunidade, não só têm o direito a existir mas que também são estruturas imprescindíveis na sua grande diversidade. Se assim é, porquê a diferença no respeitante às comunidades naturais dos seres humanos?

Os libertários que repudiam os conceitos de identidade e de soberania popular, e que se negam em preocupar-se com a sobrevivência das culturas e das etnias, não se baseiam em nenhuma fonte do anarquismo “ortodoxo”, mas sim nas necessidades e interesses do nosso tempo; e não sendo anarquistas as duas fontes, deviam ser ainda mais desconsideradas, com base nos seus objectivos e nos seus actos, como socialmente genocidas.

Dito isto, reconheçamo-lo, a tendência maioritária dos anarquistas “apátridas” geralmente tem tido razão ao destacar os aspectos potencialmente negativos do sentimento étnico, racial e nacional. De facto, como evitar que este sentimento degenere em conservadorismo social ou, pior, que surjam reacções violentas o inclusivamente a aplicação de medidas racialistas criminosas promovidas pelo seu paroxismo?

Quais são as medidas que permitiriam trabalhar de modo a conceber um sistema que permita a coexistência pacífica entre nacionalidades distintas, cada uma beneficiando da sua própria autonomia, cada uma cultivando a sua própria identidade e todas enriquecendo com o seu apoio à diversidade e à riqueza da humanidade? – ou – Que nacionalismos são legítimos e que nacionalismos não o são? – mas também – Quem pode decidir algo deste género?

O nacionalismo Bóer na África do Sul, por exemplo, é uma sequela manifesta do colonialismo branco e do apartheid, e não uma expressão de diversidade indígena. A mesma coisa pode ser dita acerca dos lealistas ingleses da Irlanda do Norte, bem como do sionismo israelita, uma expressão claramente vingativa do nacionalismo judeu de fundamentos religiosos e racistas. Mas todos estes casos são casos de nacionalismos falsos e exploradores ou de Estados multiétnicos, nos quais uma Nação nega a outra.

É aqui que se situam os verdadeiros problemas, e as questões que convém aprofundar-se daqui em frente. O fanatismo chauvinista que reina, entre outras coisas, na antiga Jugoslávia e em algumas regiões da antiga URSS, são um testemunho dramático das desastrosas consequências que podem originar da imposição autoritária de um Estado multiétnico no qual se obriga as distintas comunidades a coabitarem. Estas questões ilustram também, à força, o que muita gente de esquerda ou de sensibilidades libertárias denunciam no que chamam – às tantas – de nacionalismo “verdadeiro, cujas devastações observam com inquietação. Esta gente, de cuja sinceridade e bons sentimentos não se pode duvidar, permanece encurralada nos preconceitos fortemente enraizados daqueles que acreditam que todo o ideal nacionalista é indissociável do conceito de “Estado-nação”, fundado com base num centralismo autoritário e em relações de dominação. Esta visão reducionista das coisas impôs-se no espírito de muitas pessoas como um preconceito real que, embora baseado em factos reais, centra toda uma imagem simplista na qual umas classes dirigentes exploram as paixões étnicas e nacionalistas de modo a manterem-se no poder. Mas se aprofundarmos um pouco o assunto, esta visão demonstra os defeitos de todas as generalizações arbitrárias tão típicas das falhas de interpretação.

Não é a consciência étnica ou nacional em si mesma a fonte dos conflitos entre os povos, mas sim aqueles que por vezes a tentam desviar e instrumentalizar em seu benefício pessoal. Não, não é a consciência identitária que oprime o povo, nem o que destrói a liberdade, nem o que cria a violência, o que rebaixa e nega o indivíduo, isso é o que fazem todos os governos, as classes dirigentes, os partidos políticos do Sistema, as religiões repressivas e universalistas, o espírito de hierarquia, a plutocracia e as desigualdades sociais que se baseiam em factores exclusivamente materiais. Aqueles que unem a sua visão à de Bakunine, Landauer, Blanqui, Proudhon e Makhno, os que apoiam os povos do mundo, os que lutam em nome de um nacionalismo de libertação, em todos aqueles que actualmente se identificam como Nacional-Anarquistas ou anarco-identitários, não existe nenhuma relação com os “criptofascistas” ou com os “nazis” entre os quais nos tentam encurralar segundo uns indivíduos em jeito de terrorismo intelectual digno dos piores estados autoritários. E em nome de quê se atrevem a qualificar algo como “anarquismo de direita”, quando essa definição se deve precisamente àqueles que vivem completamente imersos nos preconceitos do sistema capitalista e pseudo democrático actual?

Os Nacional-Anarquistas não são nada disso que lhes tentam incutir. Para começar não se situam nem à esquerda nem à direita do Sistema, uma vez que se encontram fora e contra este. Os anarco-identitários querem tão só incitar o povo, grupos afins e indivíduos a libertarem-se das instituições opressivas e degradantes, com o propósito de se dirigirem para a União na Diversidade. E aqui voltamos àquilo que Landauer designou como o princípio da AUTODETERMINAÇÂO. Aqui se encontra a resolução do problema: nada de “pequeno nacionalismo” oficial e centralizador, mas autodeterminação nacional, a total liberdade para que os colectivos nacionais e os agrupamentos voluntários de indivíduos possam administrar-se eles próprios a sua própria vida, na medida em que esse exercício de liberdade não prejudique os demais.

A autodeterminação, tal como a autogestão, é a essência do ideal libertário, de uma vida alheia a toda a forma de tutela coerciva. É o núcleo do conceito de Liberdade no anarquismo, e a liberdade, como já o afirmava Bakunine, é indivisível: deve aplicar-se a todos sem excepção, sem uma única fraude, sem nenhuma máscara de privilégios, porque isto significaria a semente de uma nova tirania. Ninguém deve ser obrigado a definir-se ou a formar parte integrante de qualquer grupo étnico, nacional ou cultural. Esta escolha deve pertencer ao indivíduo e apenas a ele.